Leituras poéticas – Capítulo 72
terra, Fogo, água e ar
Mentira disfarçada
Por Majda
Hamad Pereira
Não sou água
Nem sou peixe
Não sou o todo
Nem a metade
Não sou cara
Nem sou coroa
Não sou borra
Nem leite derramado
Sou parte de todos os medos
Face atormentada
Verdade no que escrevo
Mentira disfarçada.
Reflexão – Uma leitura possível do poema:
Mentira disfarçada
O poema
"Mentira disfarçada", de Majda Hamad Pereira, convida a uma imersão
na complexidade da identidade e na tênue fronteira entre verdade e ilusão. A
autora, com maestria, utiliza a negação como ferramenta de construção poética,
criando um ambiente de incerteza e fragmentação que instiga o leitor a
desvendar as camadas de significado presentes em cada verso.
Não sou
água
Nem sou
peixe
Não sou
o todo
Nem a
metade
A repetição
anafórica do "Não sou" cria um
ritmo insistente, quase hipnótico, que enfatiza a recusa da autora em se
encaixar em categorias predefinidas. Essa técnica de negação não apenas define
o que a autora não é, mas também sugere uma busca por uma identidade que
transcende as limitações impostas pelo mundo exterior.
As metáforas da
"água" e do "peixe" evocam imagens de fluidez, adaptabilidade e
integração com o ambiente. No entanto, a autora rejeita essas qualidades,
sinalizando um desejo de se libertar das expectativas de conformidade. A água,
frequentemente associada à emoção e ao inconsciente, e o peixe, símbolo de vida
e fertilidade, são negados, o que pode indicar uma recusa em ser definida por
essas qualidades universais.
A oposição entre
"o todo" e "a metade" introduz uma tensão dialética,
explorando a dualidade entre completude e fragmentação. Ao rejeitar ambas as
opções, a autora sugere que a identidade não pode ser reduzida a uma simples
dicotomia, mas é um fenômeno complexo e multifacetado.
A escolha de não
ser o todo, e nem a metade, pode indicar um desejo de não ser algo completo, ou
incompleto, mas algo que transcende essa visão binária.
Não sou
cara
Nem sou
coroa
Não sou
borra
Nem
leite derramado
A metáfora
"cara ou coroa" transcende o jogo de azar, tornando-se um símbolo da
rejeição de escolhas binárias e identidades fixas. A autora se recusa a ser
definida por dualidades simplistas, como certo ou errado, bom ou mau, revelando
um desejo de explorar as áreas cinzentas da existência.
Isso demonstra um
amadurecimento do eu lírico em relação a primeira estrofe, que nega a dualidade
do todo e metade, e agora, aprofunda a rejeição a binarismos. As imagens de
"borra" e "leite derramado" evocam a fragilidade humana e a
inevitabilidade do erro. A autora não apenas reconhece a presença dessas
imperfeições, mas também se distancia delas, recusando-se a ser definida por
seus fracassos ou arrependimentos.
Essas metáforas
podem ser vistas como uma representação da sombra interior, os aspectos
reprimidos e indesejados da personalidade. Ao negá-los, a autora busca
transcendê-los, mas também reconhece sua existência.
A estrofe reforça a
ideia central do poema: a recusa em se encaixar em categorias predefinidas. Essa
exclusão não é apenas uma rejeição passiva, mas um ato de resistência contra as
forças que buscam homogeneizar e padronizar a experiência humana.
Sou
parte de todos os medos
Face
atormentada
Verdade
no que escrevo
Mentira
disfarçada.
A afirmação "Sou
parte de todos os medos" não é um
sinal de fraqueza, mas um reconhecimento da condição humana universal. Ao se
identificar com os medos, a autora estabelece uma conexão profunda com o
leitor, convidando-o a confrontar suas próprias angústias.
Essa identificação
mostra o rompimento do eu lírico com o estado de constante negação, e o início
da aceitação do que o compõe.
A imagem da "face
atormentada" evoca sofrimento e
angústia, mas também introspecção e autoconhecimento. A autora não teme revelar
suas vulnerabilidades, usando a poesia como um espaço de honestidade brutal. Essa
imagem pode ser vista como um reflexo da luta interna da autora para conciliar
as diferentes facetas de sua identidade.
A antítese "verdade
no que escrevo / mentira disfarçada" é o ponto
culminante do poema, revelando a complexidade da relação entre arte e
realidade.
A estrofe final
transcende o individual e adentra o universal, explorando a complexidade da
identidade humana e a relação entre verdade e ficção na arte. A autora usa a
poesia como um espelho da alma, revelando as contradições e os paradoxos que
nos definem. Essa reflexão mostra que o eu lírico encontra na escrita um meio
de expressão para os sentimentos que o afligem, e que não poderiam ser
expressos de outra forma.
Leituras...
A Sensação de Não Pertencimento
A recusa em se
encaixar em categorias predefinidas, expressa pelas negações nas duas primeiras
estrofes, pode ser interpretada como uma manifestação da sensação de não
pertencimento. A autora cria um espaço poético onde a individualidade afirma-se
pela exclusão, revelando a dificuldade de encontrar um lugar no mundo que
corresponda à sua verdadeira essência.
Essa sensação de
não pertencimento pode estar ligada a um sentimento de deslocamento, a uma
dificuldade de se adaptar às normas sociais ou a uma busca por uma identidade
autêntica que transcenda as convenções.
A Crítica à Identidade Construída
A expressão
"mentira disfarçada" é a chave para a compreensão do poema. Ela
revela a consciência da autora sobre a natureza construída da identidade. A
crítica à construção de uma identidade que mascara algo mais profundo e
complexo é um convite à reflexão sobre a autenticidade e a auto expressão.
A "mentira
disfarçada" pode ser vista como uma metáfora para as máscaras que usamos
para nos proteger, para nos adaptar ao mundo ou para corresponder às
expectativas dos outros. A autora revela a complexidade do ser humano, ao
mostrar que a verdade nem sempre é clara, e que muitas vezes, nos escondemos em
"mentiras disfarçadas" para enfrentar o mundo.
A Luta Interna e a Busca por
Autenticidade
O poema é um
retrato da luta interna entre a verdade e a ilusão, entre o que se é e o que se
aparenta ser. A autora utiliza a poesia como um espaço de introspecção e
autoanálise, explorando as camadas de sua identidade e buscando uma forma de
expressão autêntica.
A busca por
autenticidade é um tema central do poema, que convida o leitor a questionar
suas próprias noções de identidade e a refletir sobre a importância da auto
expressão.
Por fim
O poema
"Mentira Disfarçada" de Majda Hamad Pereira, é uma exploração poética
da identidade, construída através da negação e da afirmação paradoxal. A autora
utiliza a negação como ferramenta para desconstruir identidades fixas, e a
afirmação paradoxal para mostrar a complexidade do ser humano. O poema explora
a tensão entre o ser e o aparentar, revelando uma luta interna e a busca por
autenticidade. "Mentira Disfarçada" é um convite à reflexão sobre a
complexidade da identidade humana e a relação entre verdade e ficção na arte.
Poeta Hiran de Melo
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